quarta-feira, 16 de janeiro de 2013



TCHIZANDA - A Rainha dos Luenas

– Olha bem nos meus olhos: são os mesmos do grande Muata-Yâvua, o grande rei luena que um dia trouxe as suas tribos para estas terras e para as terras acima do Kassai. Repara no meu sangue: é o mesmo que correu nas veias das gerações que por aí ficaram enterradas. A brisa que corre… as árvores dos muxitos… as águas do Lago e dos rios…, continuam no mesmo sítio. São as mesmas onde bebem os homens e as feras.

Nós, por aqui vamos vivendo e só a esta terra pertencemos.

Valuêna àtuâma miaca aivulo um h’Rilôlo![1]

Nós pertencemos e estamos ligados ao grande povo mandinga. Esta terra já existia antes de virem os brancos, os soldados, os missionários, guvulo[2], muenèputos[3] e sipaios, que nos obrigam a andar vestidos.

São como aqueles que levavam pelos rios os nossos homens amarrados pelos pescoços[4]. Obrigaram com o chicote a alombar tantas pedras para que a estrada de ferro não tivesse frio. Foram muitas… muitas… como as luzes nas noites sem luar[5].

Alargou o olhar até ao horizonte e permaneceu, largos instantes, em silêncio e depois continuou:

– Como as trovoadas, os cacimbos e as chuvas, vieram, passaram e nós sempre aqui ficámos.

Há muitos cacimbos também vieram outras gentes. Vieram e partiram. Também eles levaram os nossos homens pelos rios. Dizem que para terras muito para lá donde estes rios correm. E os nossos homens por lá morreram. Nunca mais voltaram. Ficámos sem homens, tivemos de nos separar e esconder nos muxitos. As nossas mulheres continuaram a parir e a nossa raça não terminou.

Também este tempo e este comboio um dia passarão, porque não são coisas nossas. Tudo vai passar porque tudo morre. Mas o espírito dos mortos vem todos os anos. Chega com as chuvas e o vento, na tempestade e no raio que incendeia a chana. O fogo queima o capim seco e a chuva trás a erva verde. Os animais crescem e há carne, caça, e os homens são felizes. Não morrem. Regressam todos os anos. Por isso é que as madrugadas são todas diferentes. Eu tenho de ser fiel ao meu povo. Eu tenho de honrar os Luenas. Tenho marcado no meu corpo a história desta gente.

Caluíge Luêna uàmunéne cúri h’Riambeje[6]

[1] Os Luenas estão há muitos anos no Dilolo
[2] Governador
[3] Filhos de Portugal. Designação dada às Autoridades Administrativas
[4] Referência ao tempo da escravatura
[5] N.A. O último troço da linha dos CFB, entre Vila Luso e a fronteira do Congo Belga, foi assente sem brita. Esta foi colocada posteriormente, durante muito tempo. Foram também abertas em ambos os lados da mesma, valas de dois metros de profundidade e três metros de largura, para a isolarem durante a época das chuvas. Todos estes trabalhos foram executados com mão-de-obra local.
[6] O rio Luena é filho do Zambeze. Em sentido lato queria dizer: todos fazemos parte da Mãe África

João Sena, "O CAPIM ARDE VERDE"

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