quarta-feira, 26 de dezembro de 2012
Amor como Depravação do Nervo Óptico
"Entendem cordatos fisiologistas que o amor, em certos casos, é uma depravação do nervo óptico. A imagem objectiva, que fere o órgão visual no estado patológico, adquire atributos fictícios. A alma recebe a impressão quimérica tal como sensório lha transmite, e com ela se identifica a ponto de revesti-la de qualidades e excelências que a mais esmerada natureza denega às suas criaturas dilectas. Os certos casos em que acima se modifica a generalidade da definição vêm a ser aqueles em que o bom senso não pode atinar com o porquê dalgumas simpatias esquisitas, extravagantes e estúpidas que nos enchem de espanto, quando nos não fazem estoirar de inveja.
E tanto mais se prova a referida depravação do nervo que preside às funções da vista quanto a alma da pessoa enferma, vítima de sua ilusão, nos parece propensa ao belo, talhada para o sublime e opulentada de dons e méritos que o mais digno homem requestaria com orgulho."
(Camilo Castelo Branco)
sábado, 22 de dezembro de 2012
O Menino Jesus não quer ser Deus
O menino Jesus não fugia à escola.
Os outros meninos juntavam-se para fazer maldades,
o menino Jesus ficava sempre de fora.
Os meninos tinham pena dele, mas tinha que ser assim:
ele era Deus, e Deus não pode fazer determinadas coisas.
Por isso, o menino Jesus não ia para o rio roubar fruta,
nem dizia coisas indecentes. Nem sequer podia jogar à bola
com os outros, porque fazia sempre milagres.
Até que um dia o menino Jesus foi ter
com S. José e disse-lhe:
- Pai, não quero ser mais Deus.
- Isso não é comigo, é com a tua mãe.
Foi ter com a Virgem Maria. Mas ela disse-lhe:
- Agora já és Deus e pronto. Já não se pode fazer nada.
Tu hás-de habituar-te, a mim a princípio também
me meteu confusão. E agora vai estudar,
porque amanhã tens que ensinar os doutores da lei.
O menino Jesus ficou muito triste e nessa noite
não estudou nada. O milagre dos doutores
por pouco ficava estragado. Nossa Senhora zangou-se
e disse-lhe que o acusava à pomba.
Mas ele, como era Deus, sabia tudo; portanto,
sabia que as pombas não fazem mal a ninguém
e ria-se da Virgem Maria. S. José também lhe dizia:
- Não metas medo ao rapaz. Não te calas com o diabo
da pomba, tu és mas é maluca.
- Não tens nada com isso. Ainda se o menino fosse
teu filho, mas não. Falas só para questionares, és mau.
Daqui a pouco começas para aí a dizer porcarias.
Mas estas discussões acabavam sempre bem,
porque o menino Jesus fazia um milagre.
Um dia pediu à mãe um irmão, mas ela respondeu-lhe de maus modos.
Os vizinhos riam-se muito de S. José,
faziam troça de S. José por o filho dele ser filho de uma pomba,
e como S. José era muito bom,
o menino Jesus tinha pena e fazia mais milagres.
Um dos vizinhos tinha um filho muito mau
chamado Alberto Caeiro, que nunca ia à escola,
que se metia com as raparigas. O menino Jesus
tinha muita inveja dele porque ele sabia nadar como ninguém
e era dono duma caverna ao pé do rio.
Às vezes ia espreitá-lo e via-o lá dentro com as raparigas.
Acendiam fogueiras, comiam. O que o menino Jesus mais queria
era ser um rapaz como ele. Mas a mãe queria que ele fosse Deus
e o Deus que estava no céu também queria que ele fosse Deus,
porque alguém tinha que viver aquela vida
que estava escrita nos livros, uma vida pequenina
(só durava 33 anos) e ainda por cima que acabava mal!
O menino Jesus sabia tudo isto porque era Deus, e podia adivinhar.
Como era muito bom, não queria zangar a mãe,
nem aborrecer o pai do céu. Mas também não queria ser mais Deus,
porque ele é que sabia o que aquilo era.
E então começou a convencer o outro rapaz a trocar com ele.
O outro a princípio não queria, bateu-lhe, etc..
O menino Jesus podia ter feito um milagre,
fazer-lhe cair o braço, ou chamar as legiões de anjos todas.
Mas não. Disse-lhe assim:
- Ou trocas comigo ou transformo-te num porco.
O rapaz ficou assustadíssimo e fugiu para casa.
Mas o menino Jesus fê-lo voltar para trás com um milagre.
E voltou a dizer-lhe:
- Já sabes. Agora escolhe.
O outro estava muito aflito. Ofereceu-lhe a caverna,
ofereceu-lhe tudo. Mas o menino Jesus não quis.
- E depois eu, também posso fazer milagres?
- Sim, disse o menino Jesus.
- Então obrigo-te a destrocar outra vez comigo.
E quando disse isto julgou que tinha vencido o menino Jesus.
Mas o menino Jesus disse:
- Agora ainda sou Deus. E posso fazer um milagre. Esse milagre
é que tu não possas nunca obrigar-me a destrocar .
- Está bem, disse o outro.
Foram sozinhos para a floresta e lá fizeram a troca. O menino Jesus
ficou o outro, e o outro ficou menino Jesus.
E vieram por aí fora a conversar os dois.
E só depois é que viram: afinal de contas não tinham trocado nada,
porque o menino Jesus só fazia coisas perfeitas
e a troca fora tão perfeita que tinha ficado tudo na mesma.
E o menino Jesus, o de agora, voltou para casa muito aborrecido.
Afinal o pai do céu era mais esperto do que ele. E fez
mesmo umas figas, coisa que nunca tinha feito na vida,
Quando, ao deixar as últimas árvores da floresta,
viu uma pomba muito branca que levantava voo, fugia.
- Oh, disse ele quase a chorar.
manuel antónio pina
o país das pessoas de pernas para o ar
a regra do jogo
1978
sábado, 15 de dezembro de 2012
Amizade...
Pode ser que um dia deixemos de nos falar...
Mas, enquanto houver amizade,
Faremos as pazes de novo.
Albert Einstein
Pintura: Cinzia Pellin
Pássaros Feridos...
Colleen McCullough - Pássaros Feridos (The Thorn Birds)
O TI ALVINO ...
Nas traseiras dos palheiros está a oficina do ti Alvino. Assim que chego alcança-me um mocho para me sentar. É uma delícia ouvi-lo!
É, além de agricultor, ferrador e entendido em bestas e vacas. Também sabe de sapateiro: conserta botas e albardas, e põe tombas e gáspeas nos tamancos. Dá conselhos, sobre enfermidades, sementeiras, desavenças e até propostas de namorico. Embora não seja o regedor da freguesia, dirime pleitos, bulhas e desavenças, sobre desvios de cômoros e marcos nas propriedades, ou sobre indemnizações a cobrar de silvas e pernadas que invadiram os caminhos ou as courelas d´outrem. Ao regedor, o competente carpinteiro, senhor Abel Andrade, e aos cabos de ordens da freguesia só compete manter a ordem que muito poucas vezes é quebrada.
Logo pela manhã, bem cedo, o ti Alvino põe o avental de cabedal e acende a forja: primeiro, com um bocado de carqueja e os carvões que ficaram do dia anterior; depois, vai assoprando as tímidas brasas a começarem a ficar rubras. Pouco a pouco, vai deitando o carvão de pedra, já ao toque acelerado do fole, cada vez mais asmático. Num pronto, a fornalha estará em brasa, apta para acertar as ferraduras das cavalgaduras e os canelos das vacas. Cá fora, no terreiro, ainda está vazio o tronco, onde têm de ser amarradas as vacas e os bois para serem ferrados. Na época das sementeiras das batatas, do feijão e do milho, das caldas e das ervas a crescer nos pastos da ribeira, a clientela é pouca, pois há muito a fazer. Só se for a aflição de alguma vaca se ter desferrado!
Terminadas estas primeiras tarefas, está sem fôlego. Talvez pelo pó da fornalha, fica com a respiração sufocada. Como se estivesse apertado para mijar, levanta o avental, desata a correr para a venda do Manuelzinho da Casta-Pequena e... lá vai o primeiro traçadinho – um cálice de aguardente, cortado com ginjinha. Se houver o figo seco, tanto melhor!
Muitas mais pressas e outros apuros o farão dar a carreirinha daqueles dez metros, durante a manhã, para retemperar forças e fôlego, ou para celebrar obra concluída.
O homem é magro, como um cão e está sempre a fumar uns arrebenta-barrocos – tabaco Kentucky – os conhecidos “mata-ratos”. Com as mãos negras, enrola melhor cada um dos cigarros, passa a mortalha pelo beiço para colar e acende-o com um galho de lenha da fornalha. Colado ao beiço, ali ficará, umas vezes aceso, outras tantas, apagado, até que vai parar atrás da orelha. Dali, os restos das beatas seguirão para uma caixa, das da cola de benzina, onde ficarão a aguardar a nova fase da operação até se converterem em rapé.
O Alvino Simão é solteiro, republicano, ateu, mas amigo do prior e temente a Deus. Gosta muito dos anarquistas espanhóis: uns machos que deram um pontapé no cu do rei! Sempre que pode e não há que fazer, é vê-lo a caminho da raia: vaie-se embebedar, durante largos dias, com los compañeros! Regressa mais convicto nos seus ideais e preparado para levar umas broncas, senão mesmo arrochadas, da companheira, a quem ele chama “a governanta”, por ter andado todos aqueles dias na boa-vai-ela e na bebedeira, seu revolucionário de merda!
A Zeferina, vive com ele em regime de semi-internato, há um par de anos. As más-línguas dizem ser mulher de virtude: sabe deitar cartas, ler a sina e até faz rezas nas tripas dos galos pretos que sangra em noites de lua nova; para obrar afastamentos e reconciliações e até sabe defumar as roupas interiores que lhe são apresentadas com fumo de raiz de mentastro.
Começámos a prosear. Não há clientela. Ele conversa, enquanto vai desfazendo as suas beatas, do tabaco que guardou na lata. Quando tem uma boa porção, derrama o tabaco na malga de barro cru e vá de a chegar ao lume da fornalha. De uma pequena e baixa mesa, onde tem as ferramentas, as sovelas, as linhas e facas, misturadas com bocados de sola, moldes e formas da arte de sapateiro, tira uma pedra, um seixo redondo; começa então a moer na malga o tabaco quente, até que este fique reduzido a pó fino – o seu refinado rapé!
Quando termina a tarefa é um homem feliz. Derrama o rapé na ponta cortada de um corno de vaca, tapa-o com a rolha e do outro lado, tira a ponta do palito que tapa o buraquinho por onde sairá o pó e, voltando-se para mim:
– Vai uma pitada, Miguelzinho?
Sem esperar resposta, aspira por cada uma das narinas o seu rapé ainda quente. Dois espirros, como dois tiros de artilharia, várias e ruidosas assoadelas no enorme lenço tabaqueiro vermelho e está, agora, bem desperto, aliviado da cabeça e pronto: Apto para falarmos sobre assuntos sérios e das suas aventuras lá nessas terras de pretos! O que mais me aperreia: é a merda desta Ditadura! Este sacana do Salazar, – que é um beato falso, um papa hóstias! – o alma do diabo vai espremer o povo, como a sua mamã, a senhora professora, faz aos limões e aos garotos lá na escola! Como vê, eu até faço o que o alma do diabo manda! Produzir e poupar! Mas quando estou a moer o tabaco das beatas na malga de barro, faço mais força só a pensar que o filho da puta está lá também!
Passada a onda política, que descarrega a bílis alivia a alma e acalma os nervos, quer saber coisas sobra as Áfricas, os negros, as mulatas, as cidades, os barcos das viagens e como é que eu fiquei tão rico em tão pouco tempo, etc. etc. etc. Eu conto o que posso e respondo às perguntas atinadas que me vai fazendo, tentando satisfazer a sua infinita curiosidade. De repente, levanta-se.
– Já tenho a boca seca! Vamos ali à venda do gabinardo do Manelzinho. Sem a fornalha bem quente e atiçada não há máquina que aguente!
Nunca entendi o que queria ele dizer com a palavra gabinardo. Servia-se dela para todas as adjectivações, fossem boas ou más. Tinha que se tirar pelo sentido.
O padre era um bom gabinardo.
Eu tinha vindo mais rico do que uma dúzia de gabinardos.
O Afonso Costa tinha sido um gabinardo de truz! Tinha posto a padralhada a trabalhar!
Enfim... coisas complicadas!
Muito complicadas!
JOÃO SENA
in - O CAÇADOR DE BRUMAS
Quando as árvores cresceram
Gaia
Pessoa, por Ricardo Reis
Fernando Pessoa em 1929, na Adega Abel Pereira da Fonseca, em Lisboa,
a beber o seu copito.
Bocas Roxas
Bocas roxas de vinho,
Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa;
Tal seja, Lídia, o quadro
Em que fiquemos, mudos,
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses.
Antes isto que a vida
Como os homens a vivem
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas.
Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas.
Os Excluídos...
Um comissário foi removido da fotografia original, depois de cair em desgraça com Stalin - 1930.
Adolf Hitler removeu o ministro da Propaganda, Joseph Goebbels (o primeiro à sua esquerda na foto original) - 1937.
Orgulhoso, o ditador fascista da Itália, Benito Mussolini, excluiu da fotografia o tratador do cavalo, a fim de parecer mais heróico, em 1942.
Nesta fotografia adulterada de 1936, à esquerda, Mao Tsé-tung (que na foto está à direita, de mãos na cintura) removeu o dirigente do Partido Comunista da China Po Ku (o primeiro à esquerda na outra foto).
A chamada Gangue dos Quatro, uma facção política radical composta por quatro dirigentes ultra-radicais do Partido Comunista da China que se destacaram durante a Revolução Cultural e foram posteriormente acusados de uma série de crimes, foi retirada da fotografia original de uma cerimónia em memória de Mao Tsé-tung realizado na Praça da Paz Celestial, em 1976.
Adolf Hitler removeu o ministro da Propaganda, Joseph Goebbels (o primeiro à sua esquerda na foto original) - 1937.
Orgulhoso, o ditador fascista da Itália, Benito Mussolini, excluiu da fotografia o tratador do cavalo, a fim de parecer mais heróico, em 1942.
Nesta fotografia adulterada de 1936, à esquerda, Mao Tsé-tung (que na foto está à direita, de mãos na cintura) removeu o dirigente do Partido Comunista da China Po Ku (o primeiro à esquerda na outra foto).
A chamada Gangue dos Quatro, uma facção política radical composta por quatro dirigentes ultra-radicais do Partido Comunista da China que se destacaram durante a Revolução Cultural e foram posteriormente acusados de uma série de crimes, foi retirada da fotografia original de uma cerimónia em memória de Mao Tsé-tung realizado na Praça da Paz Celestial, em 1976.
Vive o Dia de Hoje!
Vive o Dia de Hoje! Não penses para amanhã. Não lembres o que foi de ontem. A memória teve o seu tempo quando foi tempo de alguma coisa durar. Mas tudo hoje é tão efémero. Mesmo o que se pensa para amanhã é para já ter sido, que é o que desejamos que seja logo que for. É o tempo de Deus que não tem futuro nem passado. Foi o que dele nós escolhemos no sonho do nosso absoluto. Não penses para amanhã na urgência de seres agora. Mesmo logo à tarde é muito tarde. Tudo o que és em ti para seres, vê se o és neste instante. Porque antes e depois tudo é morte e insensatez. Não esperes, sê agora. Lê os jornais. O futuro é o embrulho que fizeres com eles ou o papel urgente da retrete quando não houver outro.
Vergílio Ferreira, in "Escrever"
Astreia
Astreia ou Astrea (em grego antigo: Ἀστραῖα; donzela ou virgem das estrelas) é filha de Zeus e Temis. Tanto ela como a mãe são personificações da justiça. Pregava a sabedoria e ensinava aos homens actividades caseiras, como caçar, plantar, entre outras. Logo após a Idade de Ouro, abandonou a Terra para não ver o sofrimento pelo qual passaria a humanidade nas próximas idades, partindo para o céu, na forma da constelação de Virgem. A balança que transportava tornou-se na constelação próxima de Libra.
sábado, 8 de dezembro de 2012
Agora É
Agora é diferente
Tenho o teu nome o teu cheiro
A minha roupa de repente
ficou com o teu cheiro
Agora estamos misturados
No meio de nós já não cabe o amor
Já não arranjamos
lugar para o amor
Já não arranjamos vagar
para o amor agora
isto vai devagar
isto agora demora
Manuel António Pina
Agora estamos misturados
No meio de nós já não cabe o amor
Já não arranjamos
lugar para o amor
Já não arranjamos vagar
para o amor agora
isto vai devagar
isto agora demora
Manuel António Pina
Conquista
Livre não sou, que nem a própria vida
Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.
Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!
Miguel Torga, Cântico do Homem
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.
Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!
Miguel Torga, Cântico do Homem
RAINHA TCHIZANDA (2)
À hora do meio-dia, apareceu Tchizanda. Deixara o seu séquito entre as árvores, fora da nossa propriedade – terrenos do seu reino, afirmava sempre – e dirigiu-se à Clarinha que estava cá fora a ensinar garotos à sombra da mangueira.
A Clarinha disse-me, mais tarde, que julgou que ela se lhe dirigia em francês, mas, como não entendeu, fez o gesto indicativo disso mesmo. De dentro das árvores, surgiu Sitóie.
Tchizanda olhou-a bem nos olhos e mandou traduzir:
– Tu és a mulher branca mais bonita que eu vi até hoje! Os teus olhos são como o céu de madrugada. Mereces o teu homem! És valente e, como ele, sois gente boa... amiga de verdade. Estás nas minhas terras. Gostava de te dizer que és e serás sempre bem-vinda. Trouxe-te cabritos, galinhas e ovos para poderes dar de comer ao teu homem. O tchinhanga-muânèputo , salvo pelos deuses, deve ter muita fome depois da larga viagem que fez até voltar à nossa gente. Eu sempre soube que assim seria. Antes de vós aqui chegardes, no vento que tudo varre, o planalto e a anhara, vieram boas notícias. Vais ser muito feliz, minha irmã... aqui entre as gentes do nosso povo. Também serias feliz ao ver crescer o filho do teu homem e do nosso povo, que o dala-muânèputo matou... porque ainda não se podia defender. As dalas e os muânèputo já fizeram, isso mesmo, muitas mais vezes aos filhos do meu povo. Muitas vezes… Muitas vezes.
Penso que, pela primeira vez na vida, a Clarinha não soube controlar a situação. Por fim, só depois de alguns segundos, fez o gesto de lhe pedir que entrasse na nossa casa. Com outro gesto, pediu-lhe que se sentasse. Da geleira tirou duas cervejas e do aparador da cozinha trouxe dois copos de vidro. Verteu a cerveja num deles que ofereceu a Tchizanda, depois serviu-se. Sem palavras, olharam-se por longos segundos. As duas feras beberam em silêncio.
Sitóie, ajoelhado junto à porta, não se atrevera a entrar. O respeito pela rainha era evidente.
Tchizanda estava quase nua. Nas marcas tatuadas do corpo, envernizadas pelo suor ou com um qualquer produto oleoso, trazia no peito, nos tornozelos e nos pulsos, um sem fim de colares de missangas garridas, feitos de grossas pedras preciosas, misturadas com pedras verdes – as malaquites do Katanga –, tão apreciadas. No corpo, estavam bem expostos e cravados, todos os sinais e atributos da sua realeza. Sentou-se numa das cadeiras da sala e com o olhar varreu as muitas modificações que já tinha a nossa casa.
Clarinha sentou-se na outra cadeira e pediu ao Sitóie para traduzir:
– Rainha Tchizanda! Há pouco disseste que eras minha irmã. Assim eu o entendi... e assim será. Sempre. É pois como irmã que serás tratada nesta casa. Serás uma pessoa da nossa família. Uma pessoa do nosso sangue. Sempre.
Tchizanda, sem desviar o olhar e com aquele seu sorriso altivo, estendeu a mão e, como por encanto, Sitóie colocou-lhe um vidro afiado na mão. Chegara a hora do pacto da amizade: – o uàtchata cacende! O pacto de sangue mais sagrado entre os Luenas. O vidro brilhou na penumbra da sala. Deu um golpe num dos dedos e procurou o mesmo dedo na mão de Clarinha onde deu também pequeno corte. Em seguida, juntou os dedos e os sangues. Não disse mais nada. Sorriu e saiu da nossa casa caminhando, imponente, até à orla da mata.
Cá fora, escondidos no meio das árvores, os gritos guturais do seu povo deviam espalhar a grande notícia ao vento.
Na embala da rainha Tchizanda, a grande rainha dos Luenas, filha de Nhacapola, herdeira do grande Muatiânvua, o lendário Rei dos Luenas, os gomas, iniciavam o batuque, o batuque da fraternidade. Durou até ao nascer do sol.
João Sena
in - O CAÇADOR DE BRUMAS
Quando as árvores cresceram
– Tu és a mulher branca mais bonita que eu vi até hoje! Os teus olhos são como o céu de madrugada. Mereces o teu homem! És valente e, como ele, sois gente boa... amiga de verdade. Estás nas minhas terras. Gostava de te dizer que és e serás sempre bem-vinda. Trouxe-te cabritos, galinhas e ovos para poderes dar de comer ao teu homem. O tchinhanga-muânèputo , salvo pelos deuses, deve ter muita fome depois da larga viagem que fez até voltar à nossa gente. Eu sempre soube que assim seria. Antes de vós aqui chegardes, no vento que tudo varre, o planalto e a anhara, vieram boas notícias. Vais ser muito feliz, minha irmã... aqui entre as gentes do nosso povo. Também serias feliz ao ver crescer o filho do teu homem e do nosso povo, que o dala-muânèputo matou... porque ainda não se podia defender. As dalas e os muânèputo já fizeram, isso mesmo, muitas mais vezes aos filhos do meu povo. Muitas vezes… Muitas vezes.
Penso que, pela primeira vez na vida, a Clarinha não soube controlar a situação. Por fim, só depois de alguns segundos, fez o gesto de lhe pedir que entrasse na nossa casa. Com outro gesto, pediu-lhe que se sentasse. Da geleira tirou duas cervejas e do aparador da cozinha trouxe dois copos de vidro. Verteu a cerveja num deles que ofereceu a Tchizanda, depois serviu-se. Sem palavras, olharam-se por longos segundos. As duas feras beberam em silêncio.
Sitóie, ajoelhado junto à porta, não se atrevera a entrar. O respeito pela rainha era evidente.
Tchizanda estava quase nua. Nas marcas tatuadas do corpo, envernizadas pelo suor ou com um qualquer produto oleoso, trazia no peito, nos tornozelos e nos pulsos, um sem fim de colares de missangas garridas, feitos de grossas pedras preciosas, misturadas com pedras verdes – as malaquites do Katanga –, tão apreciadas. No corpo, estavam bem expostos e cravados, todos os sinais e atributos da sua realeza. Sentou-se numa das cadeiras da sala e com o olhar varreu as muitas modificações que já tinha a nossa casa.
Clarinha sentou-se na outra cadeira e pediu ao Sitóie para traduzir:
– Rainha Tchizanda! Há pouco disseste que eras minha irmã. Assim eu o entendi... e assim será. Sempre. É pois como irmã que serás tratada nesta casa. Serás uma pessoa da nossa família. Uma pessoa do nosso sangue. Sempre.
Tchizanda, sem desviar o olhar e com aquele seu sorriso altivo, estendeu a mão e, como por encanto, Sitóie colocou-lhe um vidro afiado na mão. Chegara a hora do pacto da amizade: – o uàtchata cacende! O pacto de sangue mais sagrado entre os Luenas. O vidro brilhou na penumbra da sala. Deu um golpe num dos dedos e procurou o mesmo dedo na mão de Clarinha onde deu também pequeno corte. Em seguida, juntou os dedos e os sangues. Não disse mais nada. Sorriu e saiu da nossa casa caminhando, imponente, até à orla da mata.
Cá fora, escondidos no meio das árvores, os gritos guturais do seu povo deviam espalhar a grande notícia ao vento.
Na embala da rainha Tchizanda, a grande rainha dos Luenas, filha de Nhacapola, herdeira do grande Muatiânvua, o lendário Rei dos Luenas, os gomas, iniciavam o batuque, o batuque da fraternidade. Durou até ao nascer do sol.
João Sena
in - O CAÇADOR DE BRUMAS
Quando as árvores cresceram
terça-feira, 4 de dezembro de 2012
quinta-feira, 29 de novembro de 2012
Sintra, Portugal by Nuno Trindade
Sintra
Palácio da Pena, Sintra
Palácio da Pena, Sintra
Palácio de Monserrate
O homem na Lua
Coimbra, 20 de Julho de 1969
O homem desceu na Lua. Ensacado num fato espacial e de foguetão no rabo, tanto teimou que conseguiu pôr os pés fora da Terra. E lá anda aos saltos, a lutar com a imponderabilidade, ridículo mas triunfante. Como é natural, vivi intensamente as diversas fases da viagem, e foi num misto de alívio e orgulho que ouvi a notícia do seu desfecho feliz. Agora, porém, passada a ansiedade e o entusiasmo, sinto-me triste. Que monótonas e desconsoladas aventuras nos restam no mundo! Primeiro, comandadas por computadores; depois, em vez de sonhos de arredondamento da fraternidade, propósitos objectivos de alargamento da solidão...
Miguel Torga, Diário
segunda-feira, 26 de novembro de 2012
De Que São Feitos os Dias?
De que são feitos os dias?
- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.
Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inactuais esperanças.
De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
- do medo que encadeia
todas essas mudanças.
Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças...
Cecília Meireles, in 'Canções'
Ser inteligente...
"A «firmeza de princípios», de «opiniões», pode ser uma forma vistosa de camuflar a estupidez. Ser inteligente é ser disponível."
Vergílio Ferreira
Gente triste...
“Gente triste nem é Cristão nem é Escuteiro nem é coisa nenhuma. Gente triste anda no mundo pensando em entristecer os outros. Quaisquer que sejam as nossas dificuldades, os nossos problemas e as nossas agruras, a nossa obrigação é tratar disso de noite, enquanto dormimos e enquanto os outros dormem, e todas as manhãs aparecer tendo lançado fora todos os problemas que nos podem afligir, para chegarmos aos outros e lhes dar a maior esmola e o maior amparo que efectivamente podemos dar, que é o amparo da nossa própria alegria e do nosso entusiasmo ao ver aquele dia que rompe”.
Agostinho da Silva,
Baden-Powell, Pedagogia e Personalidade, 1961
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