sábado, 15 de dezembro de 2012

O TI ALVINO ...



Nas traseiras dos palheiros está a oficina do ti Alvino. Assim que chego alcança-me um mocho para me sentar. É uma delícia ouvi-lo! 

É, além de agricultor, ferrador e entendido em bestas e vacas. Também sabe de sapateiro: conserta botas e albardas, e põe tombas e gáspeas nos tamancos. Dá conselhos, sobre enfermidades, sementeiras, desavenças e até propostas de namorico. Embora não  seja o regedor da freguesia, dirime pleitos, bulhas e desavenças, sobre desvios de cômoros e marcos nas propriedades, ou sobre indemnizações a cobrar de silvas e pernadas que invadiram os caminhos ou as courelas d´outrem. Ao regedor, o competente carpinteiro, senhor Abel Andrade, e aos cabos de ordens da freguesia só compete manter a ordem que muito poucas vezes é quebrada.

Logo pela manhã, bem cedo, o ti Alvino põe o avental de cabedal e acende a forja: primeiro, com um bocado de carqueja e os carvões que ficaram do dia anterior; depois, vai assoprando as tímidas brasas a começarem a ficar rubras. Pouco a pouco, vai deitando o carvão de pedra, já ao toque acelerado do fole, cada vez mais asmático. Num pronto, a fornalha estará em brasa, apta para acertar as ferraduras das cavalgaduras e os canelos das vacas. Cá fora, no terreiro, ainda está vazio o tronco, onde têm de ser amarradas as vacas e os bois para serem ferrados. Na época das sementeiras das batatas, do feijão e do milho, das caldas e das ervas a crescer nos pastos da ribeira, a clientela é pouca, pois há muito a fazer. Só se for a aflição de alguma vaca se ter desferrado!
Terminadas estas primeiras tarefas, está sem fôlego. Talvez pelo pó da fornalha, fica com a respiração sufocada. Como se estivesse apertado para mijar, levanta o avental, desata a correr para a venda do Manuelzinho da Casta-Pequena e... lá vai o primeiro traçadinho – um cálice de aguardente, cortado com ginjinha. Se houver o figo seco, tanto melhor!
Muitas mais pressas e outros apuros o farão dar a carreirinha daqueles dez metros, durante a manhã, para retemperar forças e fôlego, ou para celebrar obra concluída.
O homem é magro, como um cão e está sempre a fumar uns arrebenta-barrocos – tabaco Kentucky – os conhecidos “mata-ratos”. Com as mãos negras, enrola melhor cada um dos cigarros, passa a mortalha pelo beiço para colar e acende-o com um galho de lenha da fornalha. Colado ao beiço, ali ficará, umas vezes aceso, outras tantas, apagado, até que vai parar atrás da orelha. Dali, os restos das beatas seguirão para uma caixa, das da cola de benzina, onde ficarão a aguardar a nova fase da operação até se converterem em rapé.
O Alvino Simão é solteiro, republicano, ateu, mas amigo do prior e temente a Deus. Gosta muito dos anarquistas espanhóis: uns machos que deram um pontapé no cu do rei! Sempre que pode e não há que fazer, é vê-lo a caminho da raia: vaie-se embebedar, durante largos dias, com los compañeros! Regressa mais convicto nos seus ideais e preparado para levar umas broncas, senão mesmo arrochadas, da companheira, a quem ele chama “a governanta”, por ter andado todos aqueles dias na boa-vai-ela e na bebedeira, seu revolucionário de merda!
A Zeferina, vive com ele em regime de semi-internato, há um par de anos. As más-línguas dizem ser mulher de virtude: sabe deitar cartas, ler a sina e até faz rezas nas tripas dos galos pretos que sangra em noites de lua nova; para obrar afastamentos e reconciliações e até sabe defumar as roupas interiores que lhe são apresentadas com fumo de raiz de mentastro.
Começámos a prosear. Não há clientela. Ele conversa, enquanto vai desfazendo as suas beatas, do tabaco que guardou na lata. Quando tem uma boa porção, derrama o tabaco na malga de barro cru e vá de a chegar ao lume da fornalha. De uma pequena e baixa mesa, onde tem as ferramentas, as sovelas, as linhas e facas, misturadas com bocados de sola, moldes e formas da arte de sapateiro, tira uma pedra, um seixo redondo; começa então a moer na malga o tabaco quente, até que este fique reduzido a pó fino – o seu refinado rapé!
Quando termina a tarefa é um homem feliz. Derrama o rapé na ponta cortada de um corno de vaca, tapa-o com a rolha e do outro lado, tira a ponta do palito que tapa o buraquinho por onde sairá o pó e, voltando-se para mim:
– Vai uma pitada, Miguelzinho?
Sem esperar resposta, aspira por cada uma das narinas o seu rapé ainda quente. Dois espirros, como dois tiros de artilharia, várias e ruidosas assoadelas no enorme lenço tabaqueiro vermelho e está, agora, bem desperto, aliviado da cabeça e pronto: Apto para falarmos sobre assuntos sérios e das suas aventuras lá nessas terras de pretos! O que mais me aperreia: é a merda desta Ditadura! Este sacana do Salazar, – que é um beato falso, um papa hóstias! – o alma do diabo vai espremer o povo, como a sua mamã, a senhora professora, faz aos limões e aos garotos lá na escola! Como vê, eu até faço o que o alma do diabo manda! Produzir e poupar! Mas quando estou a moer o tabaco das beatas na malga de barro, faço mais força só a pensar que o filho da puta está lá também!
Passada a onda política, que descarrega a bílis alivia a alma e acalma os nervos, quer saber coisas sobra as Áfricas, os negros, as mulatas, as cidades, os barcos das viagens e como é que eu fiquei tão rico em tão pouco tempo, etc. etc. etc. Eu conto o que posso e respondo às perguntas atinadas que me vai fazendo, tentando satisfazer a sua infinita curiosidade. De repente, levanta-se.
– Já tenho a boca seca! Vamos ali à venda do gabinardo do Manelzinho. Sem a fornalha bem quente e atiçada não há máquina que aguente!
Nunca entendi o que queria ele dizer com a palavra gabinardo. Servia-se dela para todas as adjectivações, fossem boas ou más. Tinha que se tirar pelo sentido.
O padre era um bom gabinardo.
Eu tinha vindo mais rico do que uma dúzia de gabinardos.
O Afonso Costa tinha sido um gabinardo de truz! Tinha posto a padralhada a trabalhar!
Enfim... coisas complicadas!
Muito complicadas!

JOÃO SENA
in - O CAÇADOR DE BRUMAS
Quando as árvores cresceram

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