sábado, 8 de dezembro de 2012

RAINHA TCHIZANDA (2)


À hora do meio-dia, apareceu Tchizanda. Deixara o seu séquito entre as árvores, fora da nossa propriedade – terrenos do seu reino, afirmava sempre – e dirigiu-se à Clarinha que estava cá fora a ensinar garotos à sombra da mangueira.
A Clarinha disse-me, mais tarde, que julgou que ela se lhe dirigia em francês, mas, como não entendeu, fez o gesto indicativo disso mesmo. De dentro das árvores, surgiu Sitóie.
Tchizanda olhou-a bem nos olhos e mandou traduzir:
– Tu és a mulher branca mais bonita que eu vi até hoje! Os teus olhos são como o céu de madrugada. Mereces o teu homem! És valente e, como ele, sois gente boa... amiga de verdade. Estás nas minhas terras. Gostava de te dizer que és e serás sempre bem-vinda. Trouxe-te cabritos, galinhas e ovos para poderes dar de comer ao teu homem. O tchinhanga-muânèputo , salvo pelos deuses, deve ter muita fome depois da larga viagem que fez até voltar à nossa gente. Eu sempre soube que assim seria. Antes de vós aqui chegardes, no vento que tudo varre, o planalto e a anhara, vieram boas notícias. Vais ser muito feliz, minha irmã... aqui entre as gentes do nosso povo. Também serias feliz ao ver crescer o filho do teu homem e do nosso povo, que o dala-muânèputo matou... porque ainda não se podia defender. As dalas e os muânèputo já fizeram, isso mesmo, muitas mais vezes aos filhos do meu povo. Muitas vezes… Muitas vezes.
Penso que, pela primeira vez na vida, a Clarinha não soube controlar a situação. Por fim, só depois de alguns segundos, fez o gesto de lhe pedir que entrasse na nossa casa. Com outro gesto, pediu-lhe que se sentasse. Da geleira tirou duas cervejas e do aparador da cozinha trouxe dois copos de vidro. Verteu a cerveja num deles que ofereceu a Tchizanda, depois serviu-se. Sem palavras, olharam-se por longos segundos. As duas feras beberam em silêncio.
Sitóie, ajoelhado junto à porta, não se atrevera a entrar. O respeito pela rainha era evidente.
Tchizanda estava quase nua. Nas marcas tatuadas do corpo, envernizadas pelo suor ou com um qualquer produto oleoso, trazia no peito, nos tornozelos e nos pulsos, um sem fim de colares de missangas garridas, feitos de grossas pedras preciosas, misturadas com pedras verdes – as malaquites do Katanga –, tão apreciadas. No corpo, estavam bem expostos e cravados, todos os sinais e atributos da sua realeza. Sentou-se numa das cadeiras da sala e com o olhar varreu as muitas modificações que já tinha a nossa casa.
Clarinha sentou-se na outra cadeira e pediu ao Sitóie para traduzir:
– Rainha Tchizanda! Há pouco disseste que eras minha irmã. Assim eu o entendi... e assim será. Sempre. É pois como irmã que serás tratada nesta casa. Serás uma pessoa da nossa família. Uma pessoa do nosso sangue. Sempre.
Tchizanda, sem desviar o olhar e com aquele seu sorriso altivo, estendeu a mão e, como por encanto, Sitóie colocou-lhe um vidro afiado na mão. Chegara a hora do pacto da amizade: – o uàtchata cacende! O pacto de sangue mais sagrado entre os Luenas. O vidro brilhou na penumbra da sala. Deu um golpe num dos dedos e procurou o mesmo dedo na mão de Clarinha onde deu também pequeno corte. Em seguida, juntou os dedos e os sangues. Não disse mais nada. Sorriu e saiu da nossa casa caminhando, imponente, até à orla da mata.
Cá fora, escondidos no meio das árvores, os gritos guturais do seu povo deviam espalhar a grande notícia ao vento.
Na embala da rainha Tchizanda, a grande rainha dos Luenas, filha de Nhacapola, herdeira do grande Muatiânvua, o lendário Rei dos Luenas, os gomas, iniciavam o batuque, o batuque da fraternidade. Durou até ao nascer do sol.

João Sena
in - O CAÇADOR DE BRUMAS
Quando as árvores cresceram

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