quinta-feira, 29 de novembro de 2012
Sintra, Portugal by Nuno Trindade
Sintra
Palácio da Pena, Sintra
Palácio da Pena, Sintra
Palácio de Monserrate
O homem na Lua
Coimbra, 20 de Julho de 1969
O homem desceu na Lua. Ensacado num fato espacial e de foguetão no rabo, tanto teimou que conseguiu pôr os pés fora da Terra. E lá anda aos saltos, a lutar com a imponderabilidade, ridículo mas triunfante. Como é natural, vivi intensamente as diversas fases da viagem, e foi num misto de alívio e orgulho que ouvi a notícia do seu desfecho feliz. Agora, porém, passada a ansiedade e o entusiasmo, sinto-me triste. Que monótonas e desconsoladas aventuras nos restam no mundo! Primeiro, comandadas por computadores; depois, em vez de sonhos de arredondamento da fraternidade, propósitos objectivos de alargamento da solidão...
Miguel Torga, Diário
segunda-feira, 26 de novembro de 2012
De Que São Feitos os Dias?
De que são feitos os dias?
- De pequenos desejos,
vagarosas saudades,
silenciosas lembranças.
Entre mágoas sombrias,
momentâneos lampejos:
vagas felicidades,
inactuais esperanças.
De loucuras, de crimes,
de pecados, de glórias
- do medo que encadeia
todas essas mudanças.
Dentro deles vivemos,
dentro deles choramos,
em duros desenlaces
e em sinistras alianças...
Cecília Meireles, in 'Canções'
Ser inteligente...
"A «firmeza de princípios», de «opiniões», pode ser uma forma vistosa de camuflar a estupidez. Ser inteligente é ser disponível."
Vergílio Ferreira
Gente triste...
“Gente triste nem é Cristão nem é Escuteiro nem é coisa nenhuma. Gente triste anda no mundo pensando em entristecer os outros. Quaisquer que sejam as nossas dificuldades, os nossos problemas e as nossas agruras, a nossa obrigação é tratar disso de noite, enquanto dormimos e enquanto os outros dormem, e todas as manhãs aparecer tendo lançado fora todos os problemas que nos podem afligir, para chegarmos aos outros e lhes dar a maior esmola e o maior amparo que efectivamente podemos dar, que é o amparo da nossa própria alegria e do nosso entusiasmo ao ver aquele dia que rompe”.
Agostinho da Silva,
Baden-Powell, Pedagogia e Personalidade, 1961
Um País de Canalhas
Pensar Portugal. Nós somos um país de «elites», de indivíduos isolados que de repente se põem a ser gente. Nós somos um país de «heróis» à Carlyle, de excepções, de singularidades, que têm tomado às costas o fardo da nossa história. Nós não temos sequer núcleos de grandes homens. Temos só, de longe em longe, um original que se levanta sobre a canalhada e toma à sua conta os destinos do país. A canalhada cobre-os de insultos e de escárnio, como é da sua condição de canalha. Mas depois de mortos, põe-os ao peito por jactância ou simplesmente ignora que tenham existido. Nós não somos um país de vocações comuns, de consciência comum. A que fomos tendo foi-nos dada por empréstimo dos grandes homens para a ocasião. Os nossos populistas é que dizem que não. Mas foi. A independência foi Afonso Henriques, mas sem patriotismo que ainda não existia. Aljubarrota foi Nuno Álvares. Os descobrimentos foi o Infante, mas porque o negócio era bom. O Iluminismo foi Verney e alguns outros, para ser deles todos só Pombal. O liberalismo foi Mouzinho e a França. A reacção foi Salazar. O comunismo é o Cunhal. Quanto à sarrabulhada é que é uma data deles. Entre os originais e a colectividade há o vazio. O segredo da nossa História está em que o povo não existe. Mas existindo os outros por ele, a História vai-se fazendo mais ou menos a horas. Mas quando ele existe pelos outros, é o caos e o sarrabulho. Não há por aí um original para servir?
Vergílio Ferreira, in 'Conta-Corrente 2'
Completas
A meu favor tenho o teu olhar testemunhando por mim
perante juízes terríveis:
a morte, os amigos, os inimigos.
E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.
Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.
Manuel António Pina,
in “Algo Parecido Com Isto, da Mesma Substância”
E aqueles que me assaltam
à noite na solidão do quarto
refugiam-se em fundos sítios dentro de mim
quando de manhã o teu olhar ilumina o quarto.
Protege-me com ele, com o teu olhar,
dos demónios da noite e das aflições do dia,
fala em voz alta, não deixes que adormeça,
afasta de mim o pecado da infelicidade.
Manuel António Pina,
in “Algo Parecido Com Isto, da Mesma Substância”
OLHAR aquando do regresso...
Não foi preciso nada para me dar conta de que estava na minha gente. Sentado na cadeira de verga na varanda de madeira, ressequida pelos anos e quase coberta de hera, via as fragas, acesas pelos raios do sol, agasalhadas pelo musgo verdinho, – como que acabado de nascer no seio da neve derretida. À tardinha, passavam as mulheres de cântaro à cabeça; iam à fonte de mergulho tirar água. Depois, velhas e novas, conversando, subiam a barreira com os cântaros cheios, equilibrados nas molídias postas à cabeça sobre os lenços negros, e seguiam caminhando, descalças, por aquelas ruelas labirínticas de casas de xisto e de gorrão, cobertas de flores. Outras, tocam os burricos com cangalhas, onde levam embrulhado num xaile o filho de meses e o que é preciso para a ceia. Fico largos momentos a observar a paisagem dos rostos, plasmada de resignação e indiferença, da dor de ter nascido e do teimar em estar vivo. Olho as máscaras gastas das mulheres sentadas ao sol, a cismar, por detrás dos lenços negros que lhes tapam o rosto quase todo. Outras, agachadas na gasta pedra do portal ou no vão da escada, ficam a catar os piolhos aos filhos, ou a entrançar o cabelo às raparigas. As de meia-idade, no silêncio das tardes de calma, fazem as meias e remendam a roupa. Todas estão enraizadas há séculos, até um dia!... Num pronto, deixei de sentir o cheiro a suor na igreja, – gente descalça que se lavava pouco e mal, o permanente odor do estrume, e de me assustar com os milhares de moscas por toda parte; já pouco me importa o estrume, as bostas das vacas nos caminhos e na estrada, o cantar dos galos de madrugada, ou o toar dos sinos que anunciam mortes, alegrias e Trindades. Até o chiar dos eixos dos carros de bois me despertam do torpor. Deixei também de sentir a brisa fria, gelada e seca que, pelas madrugadas, vem da serra. Agora de regresso, vejo melhor como toda esta gente é pobre, talvez mesmo miserável e como, apesar disso, é tão feliz! Não foi preciso nada para me dar conta de que estava na minha gente.
domingo, 25 de novembro de 2012
Sardenta
Tu, nesse corpo completo,
Ó láctea virgem doirada! Tens o linfático aspecto
Duma camélia melada.
Cesário Verde
Cesário Verde
RAINHA TCHIZANDA
Passou uma hora e não parámos de petiscar, beber cerveja e conversar. Mal demos conta já os homens regressavam. Para nossa surpresa vinham acompanhados por muita mais gente. Tinham ido dois e agora regressavam uma data deles cantando as intermináveis loas. Quase no final, debaixo de um guarda-chuva que só tapava o sol, caminhava uma rapariga. Quando se aproximaram, vi que um homem, um rapaz novo vestindo uma velha casaca muito acanhada - das que vêm na roupa dos fardos - e por baixo, com a exígua tanga, lhe segurava o chapéu-de-sol. A moça caminhava airosamente agitando na mão direita, como se fosse um leque, um rabo de zebra. Cada um dos nossos homens trazia duas galinhas. Um elemento da comitiva da rainha transportava às costas um cabrito que não parava de berrar. Os restantes carregavam à cabeça balaios com papaias, limões, abacaxis e mangas. Quando chegaram junto de nós puseram todas aquelas coisas no chão.
A rapariga, sempre protegida pelo chapéu, ficou plantada à nossa frente. Tinha ar altivo e o corpo coberto de óleo que a fazia resplandecer. Era bonita, alta e elegante, cabelos amarrados com missangas e um par de mamas empinadas. Atava a “nanga” colorida das do Congo Belga por baixo do umbigo, deixando ver no baixo-ventre as tatuagens das Luenas.
Não foi necessário alguém dizer-me quem era. Senti, tive quase a certeza que era ela a Tchizanda, a poderosa rainha dos Luenas, filha de Nacarada e de Nhacabola, neta de Muatiânvua — o grande e heróico rei dos Luenas em todas as terras de Angola e do Congo Belga. De tantas vezes ouvir; já sabia de cor, aquela ladainha de títulos e descendências.
Vinha ela para nos cumprimentar e fazer valer o seu poder e a sua soberania. Quando a olhei nos olhos não desviou o olhar e sorriu. Num segundo percebi que estava na presença de uma fémea de excelência, uma daquelas a quem Deus deu todos os atributos. Era a negra mais linda que eu já tinha visto em toda a minha vida. Mirou-me de alto abaixo. Ao Cachadinha penso que nem o viu. Tinha vindo só para me ver e para que eu a visse. As notícias em África corriam de boca em boca e pelos vistos eu já era falado.
Um intérprete adiantou-se para traduzir. Fez questão de me dizer que estava no seu território e as pequenas ofertas que os seus súbditos traziam eram votos de boas vindas ao reino dos Luenas.
Com um timbre de voz agradável, falando baixo, disse-me que sabia perfeitamente que eu era “tchinhanga-muânèputo” e quanto eu tinha feito e honrado o seu povo. Ao contrário da maioria dos brancos eu tinha tratado bem todos os Luenas. Sabia que eu queria casar com a sua prima Monámi e já a viver comigo no Luacano. Eu era, portanto, bem-vindo. Deixou bem claro que, quando fosse necessário, teria muita honra em me receber com honra na sua “embala”. Lá seria tratado como um amigo, tal como fora recebido pela tia Nacarada, a soba do Lago.
O poder de uma africana - que nem vinha nos compêndios de História, nem constava dos tratados - estava ali à minha frente com as suas raízes e as suas tradições bem marcadas. Como nunca estivera numa corte europeia, não sabia se era ou não parecido o ritual de vassalagem. Aqui, no meio do sertão onde se julgava não haver civilização, acontecia em todo o seu esplendor e força. Era diferente? Talvez. Mas que era imponente e majestoso, darei disso noticia enquanto for vivo.
O Cachadinha estava mudo.
Os trabalhadores ajoelhados deitavam terra nas costas e escutavam em silêncio.
Foi o Cachadinha quem quebrou a cena e lhe ofereceu uma cerveja.
Tchizanda pegou na garrafa e esperou uns instantes olhando-me.
Percebi que ela queria um copo; uma rainha não bebia pela garrafa.
Sem hesitar ofereci-lhe a minha caneca de esmalte.
Então ela bebeu a cerveja devagar, mirando-me bem nos olhos. Um olhar de feitiço. Por instantes julguei ver o mesmo brilho, calor e pecado que um dia, pela primeira vez, vira nos olhos da mulher em Dakar.
Com a ajuda do intérprete, falámos da importância que tinha o caminho-de-ferro e de tudo o que com ele se relacionava. Tchizanda esperava que a lenha e os frutos viessem a ser comprados pelos CFB a preço justo. Esperava que, desta vez, a chegada dos brancos e do comboio não trouxessem mais desgraça e com eles viesse a hora de terem algum proveito do trabalho e esforço feito pelos homens das suas terras que, durante anos e a força, haviam sido contratados na linha.
A dada altura, sem mais, disse-me que era um homem bonito.
Novamente fiquei sem jeito. Surpreendido, pedi ao intérprete que repetisse o que a rainha tinha dito.
Era isso mesmo: ela sabia exactamente o que me queria dizer.
Fez um discreto sinal com o rabo da zebra, e toda a sua comitiva se pôs em marcha. Depois de uns passos, olhou novamente para mim, sorriu e começou a caminhar pelo trilho.
Vi-a perder-se entre o capim alto.
Uma aragem fresca corria no planalto e as palmeiras limpavam o ar. Eu e o Cachadinha estávamos aparvalhados. Nunca na minha vida e na curta permanência em África fora tão controlado e tão dominado por uma negra.
João Sena, O Caçador de Brumas
Assim como falham as palavras...
Assim como falham as palavras quando querem exprimir qualquer pensamento, Assim falham os pensamentos quando querem exprimir qualquer realidade.
Mas, como a realidade pensada não é a dita mas a pensada,
Assim a mesma dita realidade existe, não o ser pensada.
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos,
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença.
Alberto Caeiro
Assim tudo o que existe, simplesmente existe.
O resto é uma espécie de sono que temos,
Uma velhice que nos acompanha desde a infância da doença.
Alberto Caeiro
Conquista
Livre não sou, que nem a própria vida Mo consente.
Mas a minha aguerrida
Teimosia
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.
Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!
Miguel Torga, Cântico do Homem
É quebrar dia a dia
Um grilhão da corrente.
Livre não sou, mas quero a liberdade.
Trago-a dentro de mim como um destino.
E vão lá desdizer o sonho do menino
Que se afogou e flutua
Entre nenúfares de serenidade
Depois de ter a lua!
Miguel Torga, Cântico do Homem
Viver é...
Viver é uma peripécia. Um dever, um afazer, um prazer, um susto, uma cambalhota. Entre o ânimo e o desânimo, um entusiasmo ora doce, ora dinâmico e agressivo.
Viver não é cumprir nenhum destino, não é ser empurrado ou rasteirado pela sorte. Ou pelo azar. Ou por Deus, que também tem a sua vida. Viver é ter fome. Fome de tudo. De aventura e de amor, de sucesso e de comemoração de cada um dos dias que se podem partilhar com os outros. Viver é não estar quieto, nem conformado, nem ficar ansiosamente à espera.
Viver é romper, rasgar, repetir com criatividade. A vida não é fácil, nem justa, e não dá para a comparar a nossa com a de ninguém. De um dia para o outro ela muda, muda-nos, faz-nos ver e sentir o que não víamos nem sentíamos antes e, possivelmente, o que não veremos nem sentiremos mais tarde.
Viver é observar, fixar, transformar. Experimentar mudanças. E ensinar, acompanhar, aprendendo sempre. A vida é uma sala de aula onde todos somos professores, onde todos somos alunos. Viver é sempre uma ocasião especial. Uma dádiva de nós para nós mesmos. Os milagres que nos acontecem têm sempre uma impressão digital. A vida é um espaço e um tempo maravilhosos mas não se contenta com a contemplação. Ela exige reflexão. E exige soluções.
A vida é exigente porque é generosa. É dura porque é terna. É amarga porque é doce. É ela que nos coloca as perguntas, cabendo-nos a nós encontrar as respostas. Mas nada disso é um jogo. A vida é a mais séria das coisas divertidas.
Joaquim Pessoa, in 'Ano Comum'
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