domingo, 25 de novembro de 2012

RAINHA TCHIZANDA


Passou uma hora e não parámos de petiscar, beber cerveja e conversar. Mal demos conta já os homens regressavam. Para nossa surpresa vinham acompanhados por muita mais gente. Tinham ido dois e agora regressavam uma data deles cantando as intermináveis loas. Quase no final, debaixo de um guarda-chuva que só tapava o sol, caminhava uma rapariga. Quando se aproximaram, vi que um homem, um rapaz novo vestindo uma velha casaca muito acanhada - das que vêm na roupa dos fardos - e por baixo, com a exígua tanga, lhe segurava o chapéu-de-sol. A moça caminhava airosamente agitando na mão direita, como se fosse um leque, um rabo de zebra. Cada um dos nossos homens trazia duas galinhas. Um elemento da comitiva da rainha transportava às costas um cabrito que não parava de berrar. Os restantes carregavam à cabeça balaios com papaias, limões, abacaxis e mangas. Quando chegaram junto de nós puseram todas aquelas coisas no chão.
A rapariga, sempre protegida pelo chapéu, ficou plantada à nossa frente. Tinha ar altivo e o corpo coberto de óleo que a fazia resplandecer. Era bonita, alta e elegante, cabelos amarrados com missangas e um par de mamas empinadas. Atava a “nanga” colorida das do Congo Belga por baixo do umbigo, deixando ver no baixo-ventre as tatuagens das Luenas.
Não foi necessário alguém dizer-me quem era. Senti, tive quase a certeza que era ela a Tchizanda, a poderosa rainha dos Luenas, filha de Nacarada e de Nhacabola, neta de Muatiânvua — o grande e heróico rei dos Luenas em todas as terras de Angola e do Congo Belga. De tantas vezes ouvir; já sabia de cor, aquela ladainha de títulos e descendências.
Vinha ela para nos cumprimentar e fazer valer o seu poder e a sua soberania. Quando a olhei nos olhos não desviou o olhar e sorriu. Num segundo percebi que estava na presença de uma fémea de excelência, uma daquelas a quem Deus deu todos os atributos. Era a negra mais linda que eu já tinha visto em toda a minha vida. Mirou-me de alto abaixo. Ao Cachadinha penso que nem o viu. Tinha vindo só para me ver e para que eu a visse. As notícias em África corriam de boca em boca e pelos vistos eu já era falado.
Um intérprete adiantou-se para traduzir. Fez questão de me dizer que estava no seu território e as pequenas ofertas que os seus súbditos traziam eram votos de boas vindas ao reino dos Luenas.
Com um timbre de voz agradável, falando baixo, disse-me que sabia perfeitamente que eu era “tchinhanga-muânèputo” e quanto eu tinha feito e honrado o seu povo. Ao contrário da maioria dos brancos eu tinha tratado bem todos os Luenas. Sabia que eu queria casar com a sua prima Monámi e já a viver comigo no Luacano. Eu era, portanto, bem-vindo. Deixou bem claro que, quando fosse necessário, teria muita honra em me receber com honra na sua “embala”. Lá seria tratado como um amigo, tal como fora recebido pela tia Nacarada, a soba do Lago.
O poder de uma africana - que nem vinha nos compêndios de História, nem constava dos tratados - estava ali à minha frente com as suas raízes e as suas tradições bem marcadas. Como nunca estivera numa corte europeia, não sabia se era ou não parecido o ritual de vassalagem. Aqui, no meio do sertão onde se julgava não haver civilização, acontecia em todo o seu esplendor e força. Era diferente? Talvez. Mas que era imponente e majestoso, darei disso noticia enquanto for vivo.
O Cachadinha estava mudo.
Os trabalhadores ajoelhados deitavam terra nas costas e escutavam em silêncio.
Foi o Cachadinha quem quebrou a cena e lhe ofereceu uma cerveja.
Tchizanda pegou na garrafa e esperou uns instantes olhando-me.
Percebi que ela queria um copo; uma rainha não bebia pela garrafa.
Sem hesitar ofereci-lhe a minha caneca de esmalte.
Então ela bebeu a cerveja devagar, mirando-me bem nos olhos. Um olhar de feitiço. Por instantes julguei ver o mesmo brilho, calor e pecado que um dia, pela primeira vez, vira nos olhos da mulher em Dakar.
Com a ajuda do intérprete, falámos da importância que tinha o caminho-de-ferro e de tudo o que com ele se relacionava. Tchizanda esperava que a lenha e os frutos viessem a ser comprados pelos CFB a preço justo. Esperava que, desta vez, a chegada dos brancos e do comboio não trouxessem mais desgraça e com eles viesse a hora de terem algum proveito do trabalho e esforço feito pelos homens das suas terras que, durante anos e a força, haviam sido contratados na linha.
A dada altura, sem mais, disse-me que era um homem bonito.
Novamente fiquei sem jeito. Surpreendido, pedi ao intérprete que repetisse o que a rainha tinha dito.
Era isso mesmo: ela sabia exactamente o que me queria dizer.
Fez um discreto sinal com o rabo da zebra, e toda a sua comitiva se pôs em marcha. Depois de uns passos, olhou novamente para mim, sorriu e começou a caminhar pelo trilho.
Vi-a perder-se entre o capim alto.
Uma aragem fresca corria no planalto e as palmeiras limpavam o ar. Eu e o Cachadinha estávamos aparvalhados. Nunca na minha vida e na curta permanência em África fora tão controlado e tão dominado por uma negra.

João Sena, O Caçador de Brumas

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