segunda-feira, 26 de novembro de 2012

OLHAR aquando do regresso...



Não foi preciso nada para me dar conta de que estava na minha gente. Sentado na cadeira de verga na varanda de madeira, ressequida pelos anos e quase coberta de hera, via as fragas, acesas pelos raios do sol, agasalhadas pelo musgo verdinho, – como que acabado de nascer no seio da neve derretida. À tardinha, passavam as mulheres de cântaro à cabeça; iam à fonte de mergulho tirar água. Depois, velhas e novas, conversando, subiam a barreira com os cântaros cheios, equilibrados nas molídias postas à cabeça sobre os lenços negros, e seguiam caminhando, descalças, por aquelas ruelas labirínticas de casas de xisto e de gorrão, cobertas de flores. Outras, tocam os burricos com cangalhas, onde levam embrulhado num xaile o filho de meses e o que é preciso para a ceia. Fico largos momentos a observar a paisagem dos rostos, plasmada de resignação e indiferença, da dor de ter nascido e do teimar em estar vivo. Olho as máscaras gastas das mulheres sentadas ao sol, a cismar, por detrás dos lenços negros que lhes tapam o rosto quase todo. Outras, agachadas na gasta pedra do portal ou no vão da escada, ficam a catar os piolhos aos filhos, ou a entrançar o cabelo às raparigas. As de meia-idade, no silêncio das tardes de calma, fazem as meias e remendam a roupa. Todas estão enraizadas há séculos, até um dia!... Num pronto, deixei de sentir o cheiro a suor na igreja, – gente descalça que se lavava pouco e mal, o permanente odor do estrume, e de me assustar com os milhares de moscas por toda parte; já pouco me importa o estrume, as bostas das vacas nos caminhos e na estrada, o cantar dos galos de madrugada, ou o toar dos sinos que anunciam mortes, alegrias e Trindades. Até o chiar dos eixos dos carros de bois me despertam do torpor. Deixei também de sentir a brisa fria, gelada e seca que, pelas madrugadas, vem da serra. Agora de regresso, vejo melhor como toda esta gente é pobre, talvez mesmo miserável e como, apesar disso, é tão feliz! Não foi preciso nada para me dar conta de que estava na minha gente.


JOÃO SENA

Sem comentários:

Enviar um comentário